quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Em algum lugar, não muito longe daqui... (Parte XIX)

Aquele era um belo dia de sol. O calor até não era tão forte, mas em compensação, o famoso “mormaço” que cobria Porto Alegre, tornava o ar pesado e úmido, quase impossível de ser respirado. Pedro conhecia bem esse calor e sabia que, a melhor estratégia neste caso, era permanecer imóvel o maior tempo possível, evitando assim, qualquer desgaste desnecessário.
O chimarrão, apesar de quente, não lhe infligia mais calor. Na verdade, esta se tratava da única coisa que seu estômago aceitava receber. A todo instante, sua cabeça e estômago insistiam em lembra-lo de que havia exagerado na última noite.
Do outro lado da larga avenida, avistou algumas crianças brincando com seus pais, dirigindo-se ao Parque da Redenção, possivelmente, onde utilizariam seus brinquedos novos, que ganharam na noite de natal. Carrinhos, bolas de futebol, bonecas, bicicletas, cada uma daquelas crianças trazia algo nos braços. Algo que, naquele momento, era a coisa mais importante de seus mundos.
Com o que ele se importava? Sua família, com toda a certeza, era a coisa mais importante de todas. Lembrou-se do tom triste na voz de sua mãe quando telefonou para casa pela última vez. Sabia que não ter ido para junto dela, ainda mais naquela noite, foi doloroso demais de suportar. Assim que tivesse uma brecha, pegaria um ônibus e correria para casa. As ruas calmas, estreitas e cheias de rostos conhecidos lhe faziam muita falta.
Porto Alegre era tão fria, tão anônima. Desde quando chegou, há cerca de dois anos, nunca foi muito mais longe do que a Cidade Baixa ou no Centro. Sabia o valor da cerveja em qualquer bar da Avenida Lima e Silva e da Avenida República. Transformou aquele quadrilátero de pouco mais quatro quilômetros em sua cidade, seu domínio.
Na verdade, tinha medo de se perder, ser roubado, ou até morto. Ouvia muitas histórias sobre a capital, ou as lia no jornal. Uma vez, um conhecido seu de infância veio tentar a sorte em Porto Alegre. Depois de sua partida, não se ouviu mais falar dele, até que, um dia, a cidade toda descobriu seu trágico fim, em uma missa de domingo. O Padre João, logo após o início da missa, antes de começar a ladainha, pediu aos presentes para que fizessem uma oração silenciosa, na intenção de guiar a alma de Lucas Ribeiro para a luz, pois ele havia morrido naquela semana em uma tentativa de assalto, enquanto voltava da faculdade.
Todos os moradores da cidade ficaram muito chocados. A mãe de Lucas, beata e temente a deus, mais que qualquer um, largou as coisas da diocese, isolando-se do mundo. Seu pai, era visto frequentemente atravessando a cidade a pé, sem rumo, como se ainda não acreditasse naquilo. Alguns diziam que havia enlouquecido e que, na verdade, ele caminhava com a esperança de rever Lucas em algum lugar, vivo.
“- Ah, Porto Alegre, sua cidade horrorosa!”, pensou ele, com um sorriso triste no semblante. Apesar de temê-la, agora era capaz de ama-la também, pois foi ela quem lhe deu Ana, a moça dos cabelos vermelhos. Aquela menina que, em uma noite de natal, foi o maior presente que podia ter recebido.
Estaria ficando louco? Não parava de pensar na menina que nem sobrenome tinha, ou, pelo menos, ele não sabia se tinha. Teria ela o enfeitiçado? Se sim, gostaria de provar mais daquele feitiço. Tocar sua pele, sentir o gosto de sua boca, ouvir sua respiração ofegante no ouvido e o toque de suas unhas nas costas. Tudo fazia parte da poção mágica que ela havia lhe oferecido e que seria capaz de mata-lo, não por seu efeito maléfico e, sim, pela abstinência.
Ouviu o rangido da porta da frente da pousada, virou-se lentamente e viu a silhueta de Chico parado, de óculos escuros e cabelos bagunçados na soleira. Ele fechou a porta atrás de si e, sem dizer qualquer palavra, sentou-se nas escadas, ao lado de Pedro.
“- Chimarrão?” questionou Pedro, ao que foi prontamente respondido com um lento aceno de cabeça.
Ambos, agora, olhavam para o outro lado da avenida em absoluto silêncio. Ao que lhe parecia, Chico ainda permanecia bêbado, dado o estado deplorável de seu rosto, inchado e vermelho àquela altura.
Após passados uns cinco minutos, Pedro se encheu da espera. Virou-se rispidamente na direção de Chico e lhe indagou:
“- Chico! De onde saiu aquela guria, a Ana? Sabe, aquele de cabelos vermelhos e sardas no rosto?”
Chico permaneceu imóvel, sorvendo o mate, como se não tivesse ouvido absolutamente nada que Pedro lhe dissera há pouco.
“- Cara, tu me ouviu? A Ana estuda contigo na Federal? É militante do Partido Comunista? Fala homem!”, agora, transparecendo certa irritação.
Chico deixou a cuia sobre a pedra do degrau, virou-se lentamente para Chico e disse num tom frustrantemente calmo:
“- Que guria, Pedro? Que Ana?”
Pedro, então, levantou-se, já com suor nas axilas e com certo rubor na face, causados pelo aborrecimento que aquele sujeito lesado lhe impunha.
“- Porra, Chico! A guria que estava lá conosco tomando cerveja ontem! Saí com ela de lá, quando tu estavas falando merda com os teus amiguinhos comunistas, não lembra, cacete?” disse Pedro, em elevado tom de voz.
Chico ficou olhando-o como se nada daquilo que havia perguntado fizesse sentido. Lentamente, retirou os óculos escuros e, em um tom dramático, porém sério, falou:
“- Pedro, o que tu usou ontem? Carinha, tu só pode estar louco! Não conheço nenhuma Ana. Não tinha ninguém com esse nome lá!”
Pedro continuou a encarar Chico, sem entender bulhufas do rumo caótico que aquela conversa havia tomado.
Diante do olhar de incredulidade de Pedro, Chico, parecendo proferir estas últimas palavras com extremo cuidado, disse:
“Cara, até onde me lembro, tu estava lá escorado na parede da escola e, sem dizer qualquer coisa, virou as costas e saiu caminhando pela República, so-zi-nho!”.
(Continua...)

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